22 de novembro de 2008

A poeira luminosa das idéias



"If the doors of perception were cleansed, everything would appear to man as it is, infinite.” (William Blake)

“Se as portas da percepção fossem limpas, tudo apareceria ao homem como é, infinito.”

Porque meus olhos não são objetivas, deixei às novas câmeras digitais (ou mesmo, às polaróides), aos poetas malditos e seus ferrenhos discursos o direito de dar contorno às formas. A mim, restou a particular tarefa de iluminar os objetos com suas cores complementares. Porém, a idéia não é original.
Em Um domingo de verão na Grande Jatte (1886), George Seurat deu sua perspectiva científico-artística do mundo: uma crítica apuradamente irônica à sociedade dos autômatos imersa em sua seriedade. Através de suas referências pictóricas à inércia social, com troncos cilíndricos, sombras perpendiculares, seus manequins geométricos bem distribuídos em proporção áurea (quase como num tabuleiro de xadrez), ele privou a natureza do imprevisto, nenhum vento soprava folhas e a luz era comedidamente exata ao propósito de iluminar a paisagem pitoresca e domada – não rasgava as vistas, nem eclipsava corações. Deliberadamente incongruente, Seurat salpicou a imagem com bem-temperadas e bizarras personagens: a senhora com um macaquinho na coleira, um homem tocando trompete e a arrebitada dona com uma vara de pescar.
Todavia, com o desenvolvimento tecnológico, o advento da fotografia, desde a revolução artística permanente no fim do século XVIII, os artistas foram obrigados a colocar em xeque a antiga visão técnica da arte, como sir Ernst Gombrich chamou: “a ruptura na tradição”. Sem o brilhantismo empírico dos seus precursores impressionistas, Seurat e mais alguns companheiros fizeram um profundo estudo de como desestruturar a imagem, eliminar o contorno e levaram a cabo a tarefa começada um pouco antes, dando vida ao Pontilhismo. Ao contrário dos impressionistas, Seurat não pintava a luz natural e não permitia em seus quadros a existência do improviso, do inesperado. Tudo era devidamente calculado e estudado. As cores eram acrescentadas a golpes pequenos e precisos, pontilhando a tela através do conjunto de cores que forma o todo, e não a mistura delas – como se fazia até então. Assim, Seurat acreditava que as cores se misturariam no cérebro, formando o tom plano que nós enxergamos afinal. Contudo, como Cézanne, ele não apreciava a propensa desorganização que essa técnica podia causar. Por isso, reduziu a imagem e o espaço a formas geométricas.
Infelizmente, Seurat – morto precocemente aos 32 anos, em 1891 – não conhecera os estudos sobre a composição do átomo feitos por Niels Böhr no início do século XX. Por volta de 1910, esse físico dinamarquês propôs que os átomos giravam em torno do núcleo em camadas e níveis de energia. E depois disso, os estudos sobre o universo subatômico nos levaram a conclusões cada vez mais assustadoras sobre o cerne da matéria.
Porque eu também me questionei sobre a dureza dos objetos quando me deparei com o vazio de um átomo, não enxergo o mundo com tanto pragmatismo.
Se feito o exercício de ampliar um átomo até o tamanho da cidade universitária da USP, isto é aproximadamente 4km², poderíamos visualizar o núcleo do tamanho de uma azeitona preta miudinha. Os elétrons seriam ainda menores. E tudo, absolutamente tudo, entre núcleo e elétrons, seria um vasto oco. Essa perspectiva é inquietante. Toda a matéria é composta por pequenos conjuntos desses minúsculos vazios.
Ainda mais ousado é pensar que o lócus de um elétron é apenas uma tendência, ou melhor, padrões de probabilidade. A vida só é sólida porque padrões probabilidade são difíceis de comprimir. Derrubando a visão de que um átomo se parece com uma bola de biliar, podemos finalmente enxergar que aquilo que compõe a matéria é um sem-número de conexões. Não existem objetos no nível subatômico, apenas uma contínua troca de matéria e energia. Todos nós fazemos parte de uma inseparável teia de relações, sem limites que possam ser definidos senão como ilusões.
Seurat previu isso em sua nova técnica, provavelmente inconsciente, porém inegavelmente brilhante. Expressando a vida através de uma poeira colorida e interconectada, ele não reduziu simplesmente o espaço a uma perspectiva euclidiana (apesar de suas formas quase matematicamente geométricas), mas sim o transmutou numa massa luminosa que jamais era interrompida.
Portanto, sem nos poupar de sua delicada crítica, Seurat nos presenteou também com uma visão sensível e perspicaz da realidade. E por mais complicado que possa parecer, o que há de mais sólido no mundo é na verdade o mais extenso e suave encadeamento idéias.

Livros:
Arte moderna (Argan)
A história da arte (Gombrich)
Impressionismo (Meyer Schapiro)


Filme:

2 comentários:

Unknown disse...

À bem da verdade, quanticamente falando, não existe materia. O que é expresso como particula quantica, dando a ideia de um ponto material, só é dito desta maneira por falta de palavras mais apropriadas. O que de fato existe é um ponto concentrado de energia (particula quantica), que por sua vez só passa a existir na medida em que o observador questiona a natureza; antes ha tão somente a probabilidade de tal ponto de energia concentrado vir a existir. Assombroso, não?! Tal fato levanta questões interessantes: quem é o observador? o que é a realidade? o observador faz a realidade? o observador sou eu? se eu sou o observador, eu faço a realidade? eu faço a minha realidade? Sem duvida, a fisica quantica veio chutar o balde... Livro: "Quem Somos Nos?", William Arntz, Betsy Chasse e Mark Vicente, Prestigio Editorial. Um livro tendencioso (misticamente falando), mas sabemos não aceitar tudo o que lemos e vemos; afinal, quem cria a realidade, observador?

Lou disse...

bem-vindo(a?)!!
vou procurar a recomendação, obrigada desde já! e desde já alerta aos possíveis flagrantes tendenciosos. ;)